#CearádeAtitude: A solidariedade que salva a vida de soropositivos no Estado

26 de dezembro de 2016 - 16:48

No mês em que se celebra o Dia Mundial de Luta contra a Aids, o Ceará de Atitude conta a história da cearense Anny Jackeline dos Santos, que se dedica ao trabalho voluntário em prol da recuperação de outros soropositivos

WEB MVS7366Em 2000, após dias fragilizada por enfermidades, a cearense Anny Jackeline dos Santos despertou acamada no Hospital São José. Da médica veio a informação com gosto amargo: havia contraído o vírus HIV. A doença, que até então para ela se apresentava quase como ficcional, de uma realidade distante, agora estava em seu organismo. Parte dela abalou-se no início. Mas não se deixou abater. Há 16 anos, a ex-locutora de bingo segue firme no tratamento da Aids, acumula aprendizados valiosos, e hoje faz parte da Associação de Voluntários do Hospital São José, através da qual leva a sua experiência de vida para o auxílio na recuperação de outros soropositivos. Ao aprender a lidar com o processo de aceitação e dores, Anny luta contra o preconceito e o isolamento de quem é diagnosticado com Aids.

“Hoje se tem um tratamento eficaz, que funciona, basta você dizer sim pra ele e pra você também, porque é preciso aceitar a sua situação atual com o HIV. Eu tinha que escolher entre viver ou morrer. Escolhi viver. E estou aqui, linda, pra contar minha história”, sorri a mulher de 43 anos. Ela é uma das voluntárias da Casa de Retaguarda Clínica (CRC), lugar de acolhimento de pessoas do Interior que vem até a Capital tratar da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids). Em média, a casa, localizada no Bairro Parquelândia, recebe 35 hóspedes por mês.

WEB MVS7347Desde 2007 na CRC, Anny Jackeline fez do voluntariado sua principal ocupação e dos integrantes dos colegas de trabalho social, uma segunda família. O local é parte integrante da Associação de Voluntários do Hospital São José, grupo que há 23 anos dedica-se ao cuidado daqueles que convivem com o HIV e ao desenvolvimento de ações educativas para prevenção da doença. “As pessoas aqui (na Casa de Retaguarda Clínica) se sentem num hotel. Tem café da manhã, almoço, merenda da tarde e janta. Aqui nós (soropositivos) nos sentimos pessoas normais e ficamos à vontade pra falar besteira, contar piadas, rir”, conta.

Além da CRC, também fazem parte da associação os projetos sociais Girassol, que voluntários fazem plantão para auxiliar pacientes com HIV no Hospital São José, e Vagalume, responsável pela organização de palestras de voluntários em empresas, escolas e universidades com informações relevantes sobre doenças sexualmente transmissíveis. Participante nestes projetos, Anny também é assídua nas atividades de Bazar Solidário e ações de Dia da Beleza realizadas pela associação.

A compreensão de que a doença pode ser tratada e que a inclusão social é fator determinante neste processo faz com que Anny também seja personagem comum em palestras de conscientização sobre o vírus HIV. Além dos eventos da própria associação, a cearense faz parte do Movimento Nacional Cidadãs PositHIVas. “As Cidadãs é um movimento no país inteiro que nasceu há muitos anos. Quem chega nele, encontra motivação, renovação, oxigênio para seguir em frente. Aqui são quase 45 mulheres. Muitas ainda têm medo de irem às reuniões porque tem dificuldades de aceitar a doença, aí entra nosso trabalho”, explica.

O cuidado com as pessoas que iniciam o tratamento vai desde oferecer o abraço no momento difícil até tirar dúvidas e diminuir angústias durante o tratamento com coquetéis de medicamentos. Fazer com que elas se sintam aceitas pela sociedade “ainda cheia de preconceitos”, segundo a cearense, e despi-las do medo de revelar a doença são dedicação diária dela na CRC e no Hospital São José. “As pessoas ligam muito Aids ao emagrecimento. Então tem gente que tem medo de emagrecer e parecer doente. Eu mesmo emagreço e depois engordo, vivo na sanfoninha”, conta.

A convivência com a doença

Natural de Tauá, ela veio para Fortaleza no final de 2000 com suspeita de tuberculose. Sofria com diarreia, vômito, muita tosse e emagrecimento rápido. “Isso foi causando em minha mãe um certo temor. Fui ao hospital muito mal e cheguei a ficar cinco dias em coma. Quando acordei, vi que estava no São José. A médica residente na época me disse que a minha situação é de quem estava com o HIV. Dei um pulo da cama, foi horrível. Disse que aquilo não poderia acontecer comigo jamais”, lembra. A resistência e o medo da doença fez com que apenas meses depois, já em 2001, ela realmente fizesse o exame para se certificar o diagnóstico.

O início impactante da doença deixou sequelas em Anny. Foi acometida de uma broncopneumonia e de neurotoxoplasmose (principal causa de lesão intracraniana expansiva em pacientes com AIDS). A última acabou por acarretar um acidente vascular cerebral (AVC). Por conta disso, a soropositivo perdeu a visão do lado esquerdo e tem algumas dificuldades de fala – principalmente gagueira. “Por fora estou linda e maravilhosa, mas só Deus sabe o que passo por dentro”, relata.

A tauaense passou a ser portadora do vírus por ter se relacionado sexualmente sem preservativo com um ex-namorado, transmissor do HIV. “Eu não me sinto culpada por ter pego essa doença. Eu me sinto responsável por não ter usado o preservativo. A paixão cega e, se você não se cuidar, você vai ser uma outra pessoa do hoje pra frente. Não conhecia o passado do rapaz, que começou um gentleman no relacionamento e depois passou a se sentir meu dono. Se transformou no ‘machão’, que mulher dele não usa mais camisinha”.

“Foi assustador quando soube que estava com Aids. Eu já acompanhava a história do Cazuza, pois era e sou muito fã do Barão Vermelho. E aquilo aconteceu comigo. Não imaginava que isso poderia chegar a mim”.

A maior angústia era de como a sua família receberia a notícia. E o que era medo acabou se tornando a maior fonte de determinação para superar o problema até hoje. “Eu tinha muito medo da minha família não me aceitar, principalmente minha mãe, que era muito rígida. Mas quando ela chegou no hospital, disse assim pra mim: ‘você volta pra casa logo?’. Isso foi fundamental na minha recuperação. Ela me deu um beijo. Há muito tempo não sabia o que era um beijo da minha mãe. Depois disso eu saí da cadeira de rodas, voltei a andar, tive estímulo a recuperar a fala. A preocupação era enorme dela não me aceitar”.

Os pais e o filho – hoje com 22 anos – trouxeram a motivação e esperança para seguir vivendo. “O amor que ela (mãe) sentia por mim eu fui perceber através do HIV. Foi preciso a Aids aparecer na minha vida para eu descobrir que a minha mãe me amava. Através da dor, vi que a minha família estava do meu lado. E essa força está comigo até hoje”, se emociona. Atualmente também conta com o apoio do namorado, que está ao lado dela há mais de 12 anos.

Para Anny, a Aids “foi um mal que fez bem”. Antes da doença, ela conta que fugia de responsabilidades, bebia e fumava em excesso e tinha problemas de relacionamento com os familiares. Aprendeu novas percepções sobre o amar e o cuidar. E, como voluntária, passa isso adiante nos seus dias. Do aprendizado de como viver melhor com o vírus da aids, também desenvolveu a capacidade de levar aos seus próximos a mensagem de avivamento. “Eu sou uma pessoa normal, com um problema sério de saúde, que toma remédios para estar bem. Vou levando um dia de cada vez. É possível viver assim”.

Hospital São José: um lugar de recuperação

Tratada desde o início no Hospital São José, Anny Jackeline defende com “unhas e dentes” o local pelo qual já teve preconceito. “Eu fiquei muito envergonhada de mim por associar o São José só à Aids. Hoje eu brigo pelo hospital, porque ele pra mim é uma mãe. Se eu tiver uma dor na unha, corro pro São José. Amo aquele lugar, os médicos, os enfermeiros, os auxiliares. E também os meus companheiros voluntários, que são anjos naquele lugar”, destaca.

Criada em 1970, a unidade de Saúde do Estado é dedicada ao cuidado de pacientes com doenças infecciosas (hanseníase, meningites, tuberculose, calazar, leishmaniose, etc) e se tornou referência no tratamento de pessoas com o HIV desde o final da década de 1980. Por receber muitos pacientes portadores do vírus, também atraiu ao longo das últimas décadas o olhar de preconceito por parte de parcela da sociedade. Com o trabalho conjunto entre profissionais do hospital e voluntários, os medos e mitos têm caído com relação aos soropositivos.

 MVS7403 web“No começo era uma doença que ninguém sabia direito como passava. Precisava de quarentena, as pessoas que lidavam com os pacientes utilizavam roupas de proteção individual. Isso até chegar à compreensão que temos hoje de que a Aids não é transmissível ao toque, não é transmissível por ar, nem por beijo. O mecanismo de transmissão ou é sangue ou é via sexual”, esclarece a médica especialista em doenças infecciosas e medicina de viagem e diretora técnica do São José, Christianne Takeda.

A diminuição do preconceito e do isolamento da parcela da população que porta o vírus tem colaborado para que mais pessoas tenham realizado o tratamento com sucesso. “A grande preocupação dos pacientes é que as pessoas, só de olhar para eles, enxerguem que têm o HIV. A ideia é que a gente chege aos pacientes e diga: ‘fica tranquilo, vai dar tudo certo. Quem tem que ficar preocupado é a gente. Você só tem que tomar remédio. Aí entra a relevância de todo um trabalho com o pessoal da psicologia, da psiquiatria, os voluntários do Girassol, uma casa de retaguarda. Esse acolhimento é importante”, diz Takeda.

Atualmente o São José é responsável pelo tratamento de mais de cinco mil soropositivos do Interior do Ceará (Fortaleza, Caucaia, Cascavel, Maracanaú, Sobral, Juazeiro, Crato e Barbalha não fazem parte da demanda do hospital por terem outras zonas de atendimento). Em média, são de 260 a 290 consultas diárias (de segunda-feira a sexta-feira) de pacientes com HIV. O corpo de profissionais envolve cerca de 700 contratados da área da Saúde – 60 médicos, três psicólogos, um psiquiatra, um neurologista, cinco cirurgiões, três odontólogos e 500 enfermeiros.

Além do acompanhamento completo para os soropositivos, o hospital conta hoje com ambulatório para atendimento exclusivo de grávidas que portam o HIV. Toda quarta-feira pela manhã, gestantes captadas de todo o Ceará são tratadas. Muitas vezes vêm precocemente, ainda no início de gestação, mas também são de considerável número as que estão no sétimo ou oitavo mês e comparecem tardiamente às consultas. “Quanto mais precoce ofertar o antirretroviral para essa paciente, mais rápido se baixa a carga viral e a chance dela transmitir para o neném é mínima, menor do que 1%”, alerta a médica.

 MVS7449 webChristianne Takeda alerta que a Aids hoje, quando tratada, impede o surgimento de doenças que podem se aproveitar da baixa imunidade causada pelo vírus. Porém, a questão imunológica não é preocupação única. “Independente do paciente estar com imunidade boa ou não, ele é direcionado ao tratamento com coquetel (de medicamentos antirretrovirais). A medida diminui o risco de doença coronariana (doença arterial) relacionada ao HIV, doença cerebral, processos inflamatórios que trazem velhice fisiológica precoce (imunocenecência)”, explica a diretora, que está no hospital São José desde 1998.

Voluntários: o apoio fundamental

Há 18 anos, a artesã Estela Forte, 56, encontrou a oportunidade de realizar um sonho através da Associação de Voluntários do Hospital São José. “Sempre tive vontade de fazer esse tipo de trabalho. Certo dia, estava assistindo a um jogo do Brasil com a família, e uma amiga da minha sobrinha falou que precisava sair mais cedo de lá porque tinha plantão. Aquilo me chamou atenção, o compromisso. Perguntei o que era e ela me trouxe pra associação”, conta.

 MVS7271 webEstela entrou para o Girassol, grupo que se divide em plantões durante o dia para prestar suporte a pacientes no São José. Os voluntários se dividem em três plantões: o P8 (8h às 12h), o P14 (14h às 18h) e o P20 (20h às 6h). Também ajuda na realização de oficinas para as pessoas em tratamento. A associação oferece para este público aulas de artesanato, terapias, além de sessões de yoga e reiki (técnica oriental de relaxamento muscular).

Para ela, o apoio da associação é vital para os avanços no tratamento de pessoas com Aids, em especial por ajudar na recuperação de autoestima dessas pessoas. “Quando começou, tinham muitos pacientes esquecidos pela família. Muito pelo preconceito. No hospital mesmo, as pessoas com HIV ficavam isolados por outros pacientes. As enfermarias que recebiam gente para o tratamento eram uma espécie de ‘gueto’ dentro do São José. A discriminação é o que pesa mais. A inclusão ajuda na vontade de continuar vivendo”.

Certa vez, conta Estela, uma senhora ligou para a associação. Compartilhava a angústia por acompanhar de perto o sofrimento da vizinha, que tinha Aids e havia sido abandonada pelos três filhos em casa. “Fomos ao resgate dela. Hoje consigo contar essa história sem me emocionar, mas durante muito tempo a imagem daquela mulher escondida dentro de uma rede marcou muito minha vivência como voluntária”.

Para ser voluntário através da associação, não é questão apenas de querer. É preciso também se preparar. Todo o início de ano, a Associação de Voluntários do São José realiza inscrições para novos integrantes. Os selecionados passam, durante duas semanas, por treinamentos – realizados geralmente entre maio e junho – com médicos, enfermeiros, psicólogos e voluntários mais experientes. Tudo para que entrem capacitados para colaborar no tratamento de tantos pacientes, que carregam histórias singulares e delicadas consigo.

Voluntária há três anos e meio, a professora Sandra Teles Câmara, 42, diz que o principal cuidado de quem inicia o voluntariado deve ser a forma de se portar com relação ao sofrimento dos doentes. “Quem se torna voluntário precisa aprender a lidar com a perda. Tem que compreender que também temos as nossas feridas. Porque todos nós vamos lidar com o morrer. E não se supera uma dor com outras dores”, afirma.

A Aids no Brasil e no Ceará

O dia 1º de dezembro é, desde 1987, o Dia Mundial de Luta Contra a Aids, por decisão da Organização Mundial de Saúde. A partir desta data o último mês do ano tem sido de reforço nas ações para troca de informações e mais experiências sociais em prol do combate ao vírus do HIV.

Segundo o último Boletim Epidemiológico HIV/Aids do Ministério da Saúde, no Brasil, de 2007 até o primeiro semestre de 2016, foram notificados 136.945 casos de Aids. No Ceará, apenas neste ano, foram notificados 885 casos de infecção por HIV, 617 de Aids e 16 óbitos pela doença.

22.12.2016

André Victor Rodrigues
Jornalista/Assessor de Imprensa

Fotos: Marcos Studart / Governo do Ceará